Crise de água: modismo, futurologia ou uma questão atual?

São inúmeros os impactos de origem humana que degradam a água e modificam sua qualidade, com efeitos tanto diretos quanto indiretos sobre os corpos d’água. Entre os efeitos diretos destaca-se a introdução nos ambientes aquáticos de substâncias estranhas que, além de tornarem a água imprópria para utilização pelo homem, afetam negativamente a flora e fauna aquáticas. Um exemplo desse problema está em estudo (da autora) que compara a fauna de invertebrados que habitam o fundo das represas de Paraibuna e Pirapora, ambas no estado de São Paulo. Na primeira, pouco afetada pela ação humana, essa fauna é mais rica, contendo organismos cuja presença indica água de boa qualidade. Já em Pirapora a fauna inclui poucos indivíduos, de poucas espécies, que conseguem sobreviver em uma água sujeita a poluição pesada.

Entre os impactos indiretos está a retirada da vegetação existente nas margens, que leva à erosão nos locais desmatados e à entrada, no corpo d’água, de material inorgânico do solo. As alterações ambientais provocadas por esse material afetam os organismos que ali vivem. Também nesse caso os invertebrados do fundo da represa de Paraibuna servem como exemplo: a fauna é mais rica onde a vegetação terrestre marginal é composta por mata do que onde é composta por pastagem. Portanto, a presença de uma vegetação mais desenvolvida ajuda a manter as características estruturais do corpo d’água, o que, em última análise, favorece o conjunto dos organismos que ali vivem.

Seja qual for o motivo do mau uso, a diminuição dos estoques de água e/ou a degradação desse recurso interferem nos organismos que vivem no ambiente aquático e ainda nos elementos de ecossistemas terrestres com os quais esses organismos mantêm relações. O homem também sofre as conseqüências de suas próprias atitudes. Ao gastar muita água, despejar rejeitos domésticos e industriais em corpos d’água e desmatar suas margens, entre outras ações, pode deixar de ter esse recurso em quantidade e/ou qualidade adequadas para seu uso. Os impactos humanos sobre os ambientes aquáticos têm reflexos negativos em todas as atividades que utilizam água. No caso da agricultura irrigada, por exemplo, a iminente escassez do recurso ameaça o suprimento global de alimentos.

Veículo para muitas doenças

A redução da qualidade da água pela contaminação por esgotos domésticos, muitas vezes lançados no ambiente sem tratamento prévio, traz um problema a mais: o aumento da incidência de doenças transmitidas por esse meio, como cólera, diarréia, amebíase e esquistossomose. Essa preocupação assume proporções mais graves em países ou regiões onde é maior a pobreza. Nos países em desenvolvimento, 90% das doenças infecciosas são transmitidas pela água.

A origem do problema está nas políticas públicas: na ausência de recursos, o tratamento de água e de esgotos muitas vezes é relegado a segundo plano. No Brasil, por exemplo, o maior percentual de residências sem instalações sanitárias ocorre justamente nas regiões Norte e Nordeste, que concentram a população mais carente do país. As conseqüências das más condições de saneamento são agravadas pela desinformação, mais comum entre a população de baixa renda. Só a diarréia, segundo dados da Organização das Nações Unidas, mata quatro milhões de crianças a cada ano.

Em todo o mundo, há uma clara relação inversa entre a mortalidade infantil e o grau de acesso à água limpa. No Brasil, essa tendência também é observada quando se compara as diferentes regiões geográficas: o maior índice de mortalidade infantil ocorre na região mais pobre, o Nordeste, que tem também a menor proporção de domicílios com acesso à água tratada (em relação ao total de domicílios da região). É importante salientar que, como os dados sobre a região Norte não incluem a área rural, a mortalidade infantil pode estar subestimada.

Fonte de conflitos internacionais

Um complicador para a questão da água é o fato de que cerca de 40% da população mundial dependem de bacias hídricas divididas por duas ou mais nações, como salientou em 1993 a geóloga e cientista política americana Sandra Postel, especialista na questão do uso dos recursos globais de água. Conflitos internacionais envolvendo a questão da água têm surgido em várias regiões, principalmente em função de atitudes de países localizados na parte superior da bacia. Esses países constroem reservatórios, poluem os corpos d’água ou causam sua eutrofização, comprometendo a quantidade e/ou qualidade da água de países situados mais abaixo na bacia. A eutrofização é o aumento do teor de nutrientes (principalmente fósforo e nitrogênio) em um ambiente aquático, que leva à excessiva proliferação de certas cianobactérias e plantas (como o aguapé), alterando o equilíbrio ecológico.

Problemas desse tipo tendem a ser maiores quando envolvem nações onde a água é naturalmente escassa. No golfo Pérsico, por exemplo, as ameaças à paz surgem não só das disputas que envolvem o petróleo, mas também das relacionadas à água. Mais próximos da realidade brasileira estão os debates ocasionais provocados por represamentos do rio Paraná, dentro do país, mas que afetam o estoque e a qualidade da água que chega à Argentina. Esses conflitos podem aumentar, no caso de bacias hídricas divididas por países em desenvolvimento, quando estes buscam seguir o modelo de desenvolvimento adotado por nações mais ricas, baseado no uso de grandes quantidades de água e energia.

Economizar, reciclar e reutilizar

A alta dependência humana em relação à água e a baixa disponibilidade desse recurso tornam cada vez mais necessária a sua preservação, evitando-se tanto o gasto excessivo quanto a degradação. A simples economia de água é uma das formas de minimizar o problema. No âmbito doméstico, a economia depende essencialmente de uma mudança de costumes, em relação a atividades cotidianas. Assim, diminuir a duração do banho, fechar a torneira durante a escovação dos dentes ou evitar lavar pátios e calçadas usando apenas a mangueira traz ótimos resultados. Ao tomar banho ou escovar os dentes é relativamente fácil economizar água.

Consertar vazamentos também é importante para evitar o desperdício. Para se ter uma idéia desse tipo de perda, basta dizer que uma torneira gotejando deixa cair no ralo 46 litros de água por dia, em média. Com pouco esforço, qualquer pessoa pode pensar em maneiras de economizar água em atividades rotineiras como lavar a louça, as roupas, o carro e muitas outras.

Além da economia, a reciclagem e a reutilização surgem como alternativas para o uso mais racional da água. A reciclagem pode ser definida como o reaproveitamento de água já utilizada para determinada função, mesmo que sua qualidade tenha sido reduzida durante esse uso inicial. O reaproveitamento é feito antes que essa água atinja a rede de esgoto. Em uma residência, por exemplo, a água gasta durante o banho poderia ser reaproveitada, sem qualquer tratamento, para a descarga do vaso sanitário ou para a lavagem do quintal. A reciclagem já é uma realidade em vários setores industriais. Para as empresas, ela é economicamente interessante tanto pela própria economia de água quanto pela redução de gastos com impostos.

A reutilização consiste no reaproveitamento da água que já passou pela rede de esgoto e por uma estação de tratamento. À primeira vista, essa possibilidade pode parecer um exagero e uma perspectiva apenas a longo prazo. Vários países, porém, já estão planejando esse tipo de reaproveitamento, diante da crescente escassez. Isso acontece inclusive no Brasil: a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) desenvolve projetos, na região da capital paulista, para fornecer água tratada, não-potável, para indústrias. Com isso, grandes quantidades de água de alta qualidade deixariam de ser empregadas em atividades que não exigem tal pureza, como produção de vapor e limpeza e refrigeração de equipamentos, entre outras.

A legislação brasileira

A água é um bem de domínio público, além de um recurso limitado e dotado de valor. Essa definição é a base da política nacional de recursos hídricos, instituída pela Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Essa lei trata, entre outros pontos, da concessão de direitos de uso de recursos hídricos naturais para a realização de atividades econômicas que requeiram grandes volumes de água.

Uma questão importante também prevista nessa política é a cobrança pelo uso dos corpos d’água para o lançamento de efluentes (despejos líquidos). Para isso, a lei institui a figura do ‘usuário pagador’ — por exemplo, indústrias e municípios que lancem seus despejos em rios ou lagos. O uso dos corpos d’água seria pago de acordo com o tipo e volume do efluente lançado e, além disso, os responsáveis pelos despejos teriam que obedecer às normas que garantem a preservação dos recursos hídricos nacionais. Tais normas estão associadas à classificação, estabelecida pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em 1986, das águas doces, salobras e salinas do território brasileiro em nove classes, segundo seus usos preponderantes.

A instituição do usuário pagador depende da regulamentação da lei, em especial no que diz respeito ao domínio do curso da água, para evitar divergências entre estados ou entre um estado e o governo federal. Acredita-se que, a partir da entrada em vigor dessa cobrança, as entidades que lançam efluentes em corpos d’água passem a investir mais no tratamento de seus despejos e na reciclagem da água, levando tanto à redução do desperdício quanto à preservação das águas naturais. Essa lei poderá, sem dúvida, desempenhar papel importante no uso mais racional e responsável da água no Brasil. No entanto, como acontece com qualquer lei, não basta estar no papel para funcionar: precisa ser cumprida, e para isso é fundamental uma fiscalização rigorosa de suas determinações.

Uso mais sustentável é possível

Após todas essas informações, a resposta à questão proposta no início do texto é clara. A preocupação com a crise da água é mais do que um simples modismo ou uma previsão para o futuro. Se esse tema vem ganhando cada vez mais espaço nos fóruns de discussão, embora ainda não tenha atingido o grande público, é porque já é uma situação real em vários locais do planeta. Obviamente, os problemas relacionados ao mau uso da água já deviam estar sendo equacionados há muito tempo. Não se trata mais de tomar medidas no futuro, mas sim para o futuro.

A princípio, a aplicação de uma legislação ambiental justa e eficiente garantiria a diminuição dos impactos sobre os ecossistemas aquáticos. Isso, porém, só é válido para as atividades impactantes cujo responsável pode ser identificado com facilidade, como indústrias, sistemas agrícolas e prefeituras. No caso de ações individuais, esse controle é praticamente impossível. É muito mais fácil punir uma indústria que lance efluentes sem controle em um rio do que uma pessoa que despeja seu lixo doméstico no mesmo.

A dificuldade no controle das ações individuais decorre, muitas vezes, do fato de o indivíduo não se sentir responsável pela preservação dos recursos hídricos e/ou não ter consciência de como os seus atos podem alterar tais recursos. Em conseqüência, campanhas governamentais pelo uso mais racional da água não têm qualquer efeito na população. Por isso, junto com a criação de uma legislação adequada sobre o uso e a preservação da água, é preciso que as pessoas tomem consciência da gravidade desse problema e da necessidade de mudar a forma de utilizar esse recurso.

Essa conscientização tem dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, cada indivíduo precisa compreender que é parte integrante do ambiente e que, através de suas ações, é um agente modificador do mesmo. Em segundo lugar, deve se sentir como participante da sociedade, interagindo com iguais e compartilhando os mesmos direitos e deveres. A conscientização é a base para o exercício da cidadania, no qual o indivíduo entende que suas ações podem afetar os demais integrantes da sociedade. Consciência crítica e cidadania, por sua vez, estão intimamente ligadas à educação em todos os níveis: em casa, na escola e em qualquer outro local. Só assim será possível alcançar um uso mais sustentável da água, a fim de garantir esse recurso para as próximas gerações com a qualidade e a quantidade adequadas.

 

In: Ciência Hoje, Rio de Janeiro, vol.26, nº154, out. 1999. Ana Lúcia Brandimarte, Departamento de Ecologia Geral, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo.

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