Definições e comentários sobre a Geografia

O que é a Geografia?

O que é a Geografia? Essa é uma questão que atravessa séculos, com diferentes pontos de vista. Um especialista chegou até a dizer -- com um visível exagero -- que existem tantas geografias quantos geógrafos. É lógico que o importante são os trabalhos de pesquisa, as novas idéias (sobre o espaço mundial, sobre uma região, um lugar, um processo na sua dimensão espacial...), e não a definição do que é esse saber ou essa modalidade do conhecimento. Ater-se rigidamente a uma definição ou delimitação (pois toda definição delimita, cerca, estabelece limites) na maioria das vezes até mesmo atrapalha o avanço do conhecimento. Mas implícita ou explícitamente essa questão do que é a Geografia emerge dos trabalhos geográficos e podemos mesmo dizer que ela se atualiza constantemente. Todo novo estudo, desde que seja inovador, toda nova abordagem contribui para essa permanente redefinição do(s) objeto(s) de estudos. É por isso que afirmou-se que a Geografia -- mas o mesmo poderia ser dito da Física, da História, da Antropologia etc. -- é ao mesmo tempo uma tradição, um corpo de conhecimentos e métodos, e também um vir-a-ser, um processo que encerra uma certa indeterminação e que se redefine com as novas pesquisas. A Geografia pode ser algo num determinado contexto -- numa época, num lugar, numa corrente de pensamento -- e outra coisa (relativamente) diferente num outro contexto.

Não objetivamos aqui definir Geografia. Apenas reproduzimos algumas definições -- ou alguns comentários sobre o que é a Geografia ou qual é a sua importância -- que foram dadas no decorrer dos tempos. Vamos dividir essas falas em quatro grupos. A primeira refere-se aos geógrafos (se é que eles podem ser assim denominados) clássicos, anteriores à sistematização da geografia moderna no século XIX. Na verdade eles eram viajantes, mapeadores ou conhecedores de lugares, estrategistas e principalmente estudiosos (ou seja, eram ao mesmo tempo filósofos, físicos, astrônomos, historiadores, geógrafos...) O segundo grupo é formado por geógrafos modernos ou "científicos" (como eles se autodenominavam), que promoveram ou expandiram a institucionalização acadêmica da disciplina nos séculos XIX e XX (até os anos 1970). O terceiro grupo é formado pelos críticos ou radicais, e também pelos fenomenológicos, os geógrafos que procuraram revolucionar ou reconstruír o saber geográfico a partir da década de 1970. E o quarto grupo é formado por não geógrafos, por escritores, políticos ou cientistas em geral (físicos, historiadores...) que proferiram comentários a respeito da natureza da Geografia. Neste último grupo predominam as falas que enfatizam a importância da geografia (ou do seu ensino), mas também incluimos uma -- do escritor argentino Borges -- que faz uso de uma metáfora brincalhona, que na realidade usa uma visão estereotipada da geografia como um saber enciclopédico e descritivo (algo que foi mais ou menos verdadeiro até o século XIX), e isso com o objetivo de trazer um pouco de humor neste campo em geral árido e circunspeto.

1. Pontos de vista clássicos:

"A Geografia é uma ciência como qualquer outra e interessa sobremaneira ao filósofo. Ela se ocupa do estudo ou descrição da Terra. A maior parte da Geografia satisfaz a necessidade dos Estados(...) A Geografia em seu conjunto tem um vículo com as atividades dos dirigentes. Os grandes generais são, sem exceção, homens capazes do governar por terra e por mar, de unir povos sob um governo ou uma administração pública(...) Até mesmo um caçador terá mais êxito se conhecer a natureza e a extensão do bosque e, além do mais, só aquele que conhece uma região pode escolher o melhor lugar para acampar, para fazer uma emboscada ou para dirigir uma campanha militar." (ESTRABÃO, século I a.C.).

"O propósito da Geografia é oferecer uma 'visão de conjunto' da Terra localizando e mapeando os lugares ou regiões" (PTOLOMEU, 150 d.C.).

"A Geografia é uma descrição geral do mundo. Ela se divide em duas partes: uma geral e outra especial. A primeira estuda a Terra em seu conjunto, explicando as suas diversas partes e características. A segunda, ou seja, a geografia especial [regional], respeitando os conceitos gerais, estuda as regiões concretas: suas localizações, divisões, limites e outros aspectos dignos de serem conhecidos." (Bernard VARENIUS, século XVII).

"A Geografia é uma disciplina sinóptica que procura sintetizar os achados de outras ciências por meio do conceito de 'Raum' [área ou espaço]. Ela pode ser dividida em geografia física e mais cinco modalidades. A geografia matemática, que estuda a forma, tamanho e movimentos da Terra, assim como as suas relações com o sistema solar. A geografia moral, que explica os diversos costumes e características dos povos de diferentes regiões. A geografia política, que relaciona a organização política de um Estado com a sua geografia física [seu território]. A geografia comercial, que se ocupa dos intercâmbios mercantis. E a geografia teológica, que estuda as transformações dos princípios teológicos em virtude do terreno(...) A História e a Geografia podem ser vistas como uma descrição, com a diferença que a primeira ocupa-se do tempo e a segunda do espaço. A História estuda a relação dos acontecimentos no tempo e a Geografia estuda a relação dos fatos que se dão uns junto com os outros no espaço" (Emmanuel KANT, século XVIII).

2. Pontos de vista modernos:

"A Geografia é uma ciência síntetizadora que conecta o geral com o especial através do levantamento, do mapeamento e da ênfase no regional. Ela se ocupa da influência que o meio físico exerce sobre o Homem e procura interligar o estudo da natureza física com o estudo da natureza moral para se chegar a uma visão harmonizante [entre a humanidade e o meio físico]" (Alexander Von HUMBOLDT, meados do século XIX).

"O objetivo da Geografia não é o de simplesmente reunir e elaborar uma massa de informações [sobre a Terra ou as regiões], como faziam os meus predecessores, e sim assinalar as 'leis gerais' que explicam a diversidade natural, mostrar a sua conexão com qualquer fato singular e indicar numa perspectiva histórica a perfeita unidade e harmonia que existe, por trás da aparente diversidade e capricho que prevalece no planeta, entre a natureza e o Homem." (Karl RITTER, meados do século XIX).

"O que é a Geografia? A resposta pode ser dada através da seguinte pergunta: Pode a Geografia converter-se numa ciência ao invés de um simples amontoado de informações? Essa é uma questão que diz respeito ao objeto e aos métodos da nossa disciplina. Mas existe ainda uma outra interrogação preliminar: A Geografia é una ou múltipla? Ou, em outras palavras, a geografia física e a política constituem duas etapas de uma mesma investigação ou são temas diferentes que devem ser estudados por métodos distintos, sendo uma um apêndice da geologia e a outra um apêndice da história? (...) Proponho uma definição de Geografia como a ciência que se ocupa da interação entre o homem em sociedade e o seu meio ambiente. As comunidades humanas devem ser consideradas como unidades em luta pela existência, mais ou menos favorecida pelo seu meio. As duas partes da Geografia se complementam. A geografia física analisa os fatores do meio ambiente com as suas variações e a geografia política demonstra as relações que existem entre a sociedade e as variações locais do seu meio. A Geografia tem uma dimensão teórica [o ensino, a pesquisa pura] e uma outra prática e inseparável [a sua utilidade para o Estado e para as atividades mercantis]." (Halford J. MACKINDER, 1887).

"A Geografia deve ser, em primeiro lugar, um estudo das leis que modificam a superfície terrestre: as leis que determinam o crescimento e desaparição dos continentes, suas configurações passadas e presente(...) A Geografia deve, em segundo lugar, estudar as consequências da distribuição dos continentes e mares, das elevações e depressões, dos efeitos da penetração do mar e das grandes massas de água no clima. Ela deve ainda explicar a distribuição geográfica dos seres vivos, animais e vegetais. E a quarta função da Geografia refere-se aos grupos humanos sobre a superfície da Terra. Suas distribuições, seus traços distintos, a distribuição geográfica das etnias, dos credos, dos costumes, das formas de propriedade e as relações disso tudo com o meio ambiente(...) O ensino da Geografia deve perseguir um triplo objetivo. Deve despertar nos alunos a afeição pela natureza. Deve ensinar-lhes que todos os seres humanos são irmãos qualquer que seja a sua nacionalidade ou a sua 'raça'. E deve inculcar o respeito pelas culturas ditas 'inferiores'." (Prior KROPOTKIN, 1885).

"A Geografia enquanto um 'conhecimento da Terra' seria uma ciência da Terra [geociência]. Alguns autores, como Gerland, desejam excluir o Homem da Geografia. Outros desejam conhecer as influências exercidas pela natureza sobre o Homem. [Contudo] A definição da Geografia como ciência da Terra não é consequente. A Geografia pode ser definida como o conhecimento do espaço terrestre, sendo ao mesmo tempo uma ciência concreta e corológica. Essa distinção entre ciências abstratas e concretas foi estabelecida por A. Comte. E foi Kant quem estabeleceu a distinção entre ciências sistemáticas [como a Física], cronológicas [como a História] e corológicas ou espaciais [como a Geografia]. Ela procura compreender a diferenciação local dos elementos naturais e humanos(...) O geógrafo que não se preocupa com o conhecimento das regiões corre o perigo de ficar completamente desprovido de fundamento geográfico. O conhecimento das regiões, mesmo sem a geografia geral, continua sendo um conhecimento geográfico. Em contrapartida, a geografia geral sem o conhecimento das regiões de maneira nenhuma pode cumprir o papel da Geografia e com frequência situa-se fora do âmbito desta disciplina." (Alfred HETTNER, 1905).

"Um indivíduo geográfico não resulta somente das condições geológicas e climáticas. Não é completamente livre das mãos da natureza, mas é um homem que revela a sua individualidade moldando um território para o seu próprio uso. A Geografia tem como missão investigar como as leis físicas ou biológicas que regem o globo se combinam e se modificam ao aplicarem-se às diversas partes da superfície terrestre. A geografia tem como missão especial estudar as expressões cambiantes que existem nos diversos lugares(...) O geógrafo deve buscar o encadeamento e a unidade dos elementos que agem sobre a superfície terrestre. A Terra é o domínio do Homem. Mas é preciso que a humanidade conheça o seu domínio para dele desfrutar e para fazer-se valer. A Geografia tem com função ensinar isso." (Paul VIDAL DE LA BLACHE, 1913).

"A Geografia, tal como a História, é essencial para a compreensão total da realidade. Elas se assemelham na medida em qua ambas são ciências integradoras e interessadas no estudo do mundo. Existe, portanto, uma relação universal e mútua entre elas, inclusive se suas bases de integração são num certo sentido opostas -- a Geografia em função dos espaços terrestres e a História em função dos períodos de tempo -- , a interpretação das configurações geográficas atuais requer um certo conhecimento do desenvolvimento histórico. Da mesma maneira, a interpretação dos acontecimentos históricos requer um certo conhecimento do seu contexto geográfico(...) A Geografia estuda as diferenciações entre as áreas da superfície terrestre e por conseguinte seleciona os fenômenos a serem considerados em função do seu significado geográfico. Ao estudar a inter-relação entre esses fenômenos [físicos e humanos], a Geografia depende em primeiro lugar da comparação de mapas que representam a expressão regional dos fenômenos individuais, ou dos fenômenos inter-relacionados." (Richard HARTSHORNE, 1939).

"A Geografia encontrou um objeto próprio através do estudo das paisagens. É um objeto que relaciona as ciências naturais, as humanas, econômicas e sociais. Na literatura geográfica alemã foi S.Passarge o primeiro que usou a denominação 'geografia da paisagem' e, desde 1913, propôs em várias obras o conceito de 'ciência da paisagem'. A palavra alemã 'Landschaft' (paisagem) existe há mais de mil anos e teve uma interessante evolução linguística. É um conceito presente na ciência e na arte. Na ciência, somente a geografia deu um uso a esse conceito e o transformou num objeto de estudos. A partir daí o movimento de proteção da natureza e o paisagismo cunharam os conceitos de proteção, conservação e criação da paisagem. Podemos distinguir o aspecto fisionômico ou formal da paisagem do seu aspecto fisiológico ou funcional. O primeiro diz respeito ao espaço como uma totalidade e o segundo refere-se à interação entre todos os geofatores: os naturais, os econômicos e os culturais." (Karl TROLL, 1950).

"É útil dividir uma ciência em três elementos: a lógica, os fatos de observação e a teoria. A lógica inclui a Matemática e tem a ver com a relação entre os símbolos. Os fatos de observação [isto é, o(s) objeto(s) de estudos] devem ser designados operacionalmente, já que somente através de uma descrição exata de como foi feita uma observação é que se pode idenfificar um fato particular. A teoria se forma por união do sistema lógico com os fatos definidos operacionalmente. A teoria é o coração da ciência, porque uma teoria científica é a chave para abrir a realidade(...) Existem dois problemas que dificultam tratar a Geografia como ciência. O primeiro refere-se à função da descrição na Geografia e o segundo à possibilidade de predição dos fenômenos geográficos. Existem autores que sustentam que a descrição não é científica. Essa posição é insustentável. Existe uma infinidade de fatos e qualquer descrição é sempre seletiva. Os geógrafos estão sempre buscando algo que considerem significante. A significação só pode ser julgada por outro fenômeno. Isso implica numa relação e esta numa teoria(...) Na Geografia, como em qualquer outra ciência, existe uma interação contínua entre lógica, teoria e fatos (descrição). Nenhuma pode ser separada das demais. Devido a isso é absurdo pretender que uma das três, no caso a descrição, seria 'mais geográfica' que as outras. O problema da Geografia consiste em encontrar uma maneira mais econômica de ordenar nossa percepção dos fatos. A predibilidade dos fenômenos geográficos depende da resposta a esta pergunta: São os fenômenos geográficos únicos ou gerais? Se eles são únicos [irrepetíveis, originais] não são preditíveis e não se pode construir teorias. Se eles são gerais são preditíveis e podem originar teorias. Muitos geógrafos confundem casos 'unicos' com 'individuais'. Eles imaginarm que os fenômenos geográficos são únicos e portanto não teorizáveis de forma lógica. Mas eles são individuais, e o caso individual implica não em unicidade e sim numa generalidade. Por exemplo, aceita-se que existe uma teoria que explica a formação de ilhas. Mas só existe uma ilha de Manhatan. Nesse sentido a ilha de Manhatan corresponde à teoria das ilhas embora seja diferente de todas as outras ilhas devido a uma combinação quantitativa particular de fatos." (William BUNGE, 1962).

"A Geografia é uma ciência humana. O espaço terrestre é objeto de estudo geográfico na medida em que é, sob uma forma qualquer, um meio de vida ou uma fonte de vida, ou uma indispensável passagem para aceder a um meio de vida ou a uma fonte de vida(...) A Geografia aparece assim como uma ciência do espaço em função do que ele oferece ou fornece aos homens. Como ciência do espaço, ela é chamada a fazer balanços do que representa globalmente esse espaço para os homens que aí vivem. A Geografia compartilha com as ciências da Terra a característica de ciência do espaço, mas não tem os mesmos objetivos que elas. Para situar as coletividades humanas em seu quadro, empresta às ciências da Terra seus resultados, se necessário seus métodos. Mas é mais sintética que elas. O geógrafo deve ter uma competência que lhe torne inteligíveis, simultaneamente, processos geológicos, climatológicos, hidrológicos, biológicos. Esta é a condição de uma representação total do meio percebido globalmente pelas coletividades que o ocupam(...) A Geografia é o resultado e o prolongamento da História. O objetivo dos métodos geógraficos é o conhecimento de 'situações'. Uma situação é a resultante num dado momento -- que é por definição, em Geografia, o momento presente -- de um conjunto de ações que se contrariam, se moderam ou se reforçam e sofrem os efeitos de acelerações, de freios ou de inibições por parte dos elementos duráveis do meio e das seqüelas das situações anteriores. O estudo de uma situação pode proceder de uma concepção contemplativa ou de uma concepção ativa(...) Assim definida, a Geografia se apresenta como uma imagem 'instantânea' do mundo. O geógrafo é por definição o agente de coordenação, o intermediário natural entre o exército de técnicos especializados e a política que toma as decisões." (Pierre GEORGE, 1964).

3. Pontos de vista radicais, críticos e/ou humanistas:

"Através desta revista desejamos desenvolver paradigmas alternativos para estudar o presente, investigar formas de mudança radical com vistas a sociedades futuras mais justas. A revista 'Antipode' foi gerada pela aparente falta de preocupação da nossa disciplina [a Geografia] com as questões sociais. Uma década de mudanças nos 'métodos' da investigação geográfica [a revolução quantitativa] não foi suficiente para suscitar uma alteração na 'direção' das preocupações geográficas(...) Nosso objetivo é uma mudança radical -- a substituição das instituições e o ajuste institucional de nossa sociedade com vista a novos objetivos(...) A 'nova esquerda geográfica' difere do velho liberalismo nos seus níveis de compromisso e na sua crença em um processo de mudança radical. Isso significa principalmente três coisas: pleitear uma sociedade mais equitativa na qual se erradique a pobreza, o sofrimento e o decadente sentimento de inutilidade e inevitabilidade; trabalhar para a consecução de uma mudança radical empregando todas as técnicas à nossa disposição com o propósito de romper e reconstruir a estrutura de opiniões convencionais; e organizar-se para uma ação efetiva dentro da Geografia acadêmica, que em geral é profundamente conservadora." (Richard PEET e Outros, número 1 da revista Antipode, 1969).

Pode-se dizer com Sanderson que, mesmo nas tribos de caçadores, a utilização do mesmo território cria uma solidariedade social, independente dos laços sangüíneos e mais forte que eles. Entre os Algonquinos da América do Norte, povo caçador, o território de cada tribo era dividido em setores atribuídos desde tempos imemoriais às mesmas famílias; esses grupos de família constituíam a verdadeira unidade social; o cimento desta unidade não era o laço de parentesco mas a comunidade de poder do mesmo território, do mesmo setor. Esses setores tinham entre os Algonquinos uma média de 200 a 400 milhas quadradas por família, no território central da tribo, e duas a quatro vezes mais sobre a fronteira desse território. Sobre esse território a família caça. A caça é regulamentada de tal maneira que apenas o crescimento natural dos animais é consumido; tem-se o cuidado de deixar após cada estação muitos animais para assegurar as provisões do ano seguinte: sabe-se que um massacre indiscriminado exporá a família à fome. Em todos os domínios de caça da América pré-colombiana (caribu, bisão, guanaco) existia a mesma organização. Entre os povos inferiores da Austrália, a tribo tinha os mesmos direitos de coleta e de caça sobre um território devidamente limitado; no interior mesmo do território da tribo cada unidade familiar possuía direitos semelhantes. Com mais forte razão entre os povos agrícolas, a base territorial leva vantagem como cimento social sobre os princípios de natureza psicológica. Todas as comunidades agrícolas têm uma estrutura determinada pelos laços que as prendem ao solo; grupamento das habitações em aldeias, dada a necessidade de defenderem-se e sobretudo às necessidades do trabalho em comum; a organização extremamente regulamentada pela posse das terras cultivadas e baseada na rotação de culturas de uma parte a outra do território; caráter permanente dos limites da terra; em certos países, as obras de irrigação cuja localização comanda a repartição territorial dos campos cultivados. Diz ainda Sanderson: "A comunidade da aldeia foi o meio de dar à humanidade um governo local baseado sobre o princípio territorial, de preferência ao princípio de parentesco." Substituindo a organização tribal por esta organização territorial, há uma base geográfica que, desde uma alta antigüidade, a maior parte das civilizações deu aos grupamentos rurais. Esses habitats onde os homens se agrupam, onde eles trabalham, são de dimensões muito desiguais que podem ir da localidade elementar ao grande território. Eles formam os quadros no interior dos quais se distribuem os fatos geográficos e, por seus caracteres próprios, imprimem uma originalidade para a Humanidade que aí se concentra. Compreender e descrever essas unidades regionais é uma das funções primordiais da Geografia, porque cada uma delas forma freqüentemente uma espécie de personalidade que é preciso reviver. Esta Geografia Regional constitui um dos pontos de apoio essenciais do trabalho da Geografia Geral, porque geralmente só se consegue conceber os grandes conjuntos pela análise de pequenos pays que a compõem; para melhor abranger os fatos gerais é bom partir do particular, do localizado, do regional, observar o que a região contém de particular em seus horizontes, suas plantas, seus habitantes e definir alguma coisa de animado que resulta da união de um fragmento de terra com um grupo humano. Somos levados, dessa maneira, invencivelmente ao ponto de partida do nosso conhecimento do mundo, ao substrato imediato de nossa existência material. É freqüentemente pela análise dos caracteres que compõem a fisionomia de uma região que se pode melhor compreender as relações que unem os homens a seu meio.

Terceiro princípio: Para ser compreensiva e explicativa, a Geografia Humana não pode ater-se somente à consideração do estado atual das coisas. É preciso encarar a evolução dos fatos, remontar ao passado, isto é, recorrer à História. Muitos fatos que, considerados em função das condições presentes, nos aparecem como fortuitos se explicam desde que se os considere em função do passado. A História abre vastos horizontes sobre o passado que viu suceder tantas experiências humanas. Esta noção de idade, de evolução, é indispensável. Sem ela a razão do que existe nos escaparia freqüentemente. Como, por exemplo, a Geografia Urbana poderia dispensar a História? Como explicar Roma, Paris, Londres, sem conhecer seu passado? Como compreender a população de um velho país como a França, se não conhecemos a história do plantio, do desflorestamento, da partilha dos campos, dos trabalhos de drenagem e de represamento? Todo o estudo desta conquista do solo é feito com base na História. Eis por que os trabalhos de Geografia Humana contêm sempre muito de pesquisas históricas, e por que os geógrafos se encontram freqüentemente nos depósitos de arquivos, com os historiadores. Para explicar os fatos que observa, o geógrafo não deve contentar-se de situá-los racionalmente no espaço; é preciso também que ele os projete no passado. Também deve saber servir-se dos documentos históricos e saber também onde encontrá-los. Para tomar somente o exemplo da França, existem grandes depósitos de arquivos: os Arquivos Nacionais de Paris, que possuem para as diferentes séries ao menos um inventário sumário; os Arquivos Departamentais, que não estão de todo inventariados; os Arquivos Comunais, muito desigualmente acessíveis. Muitas bibliotecas possuem depósitos de documentos inéditos, desde a Biblioteca Nacional de Paris até as das grandes cidades da França e as dos estabelecimentos públicos, como a École des Ponts et Chaussées. Em seguida, há os arquivos nas administrações públicas: Ministérios de Obras Públicas, do Comércio, da Agricultura; cadastro, sem talar nos arquivos da Câmara de Comércio, da Rede Ferroviária, Companhias de Mineração, Companhias de Navegação, Sociedades Agrícolas e Industriais, e mesmo dos arquivos dos tabeliães tão interessantes a pesquisar para o estudo das propriedades e explorações. Pode dar, enfim, como exemplo de uma massa de documentos à disposição de pesquisadores a coleção de documentos inéditos sobre a história econômica da Revolução Francesa, rica já de mais de uma centena de volumes, e que projetam uma viva luz sobre tantos fatos da Geografia Humana: a exploração das culturas de charnecas, bens comunais, direitos de percursos e de terrenos cuja pastagem é livre, oficinas rurais e indústrias domiciliares; a metalurgia e as florestas, os inícios do maquinismo, a rede das estradas e das vias navegáveis, o movimento da população, a evolução da agricultura, os regimes agrários. Portanto, o estudo do passado é necessário á explicação dos fatos da Geografia Humana. A Humanidade evolui no tempo. Para compreender esta evolução o testemunho da História é tão necessário como o conhecimento das leis naturais.

Retirado do livro Perspectivas da Geografia (1982), direitos autorais Difel.
Fonte: http://ivairr.sites.uol.com.br/index.html


 

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