O que é ouvir

Mauro Martins AMATUZZI (Psicólogo, doutor em Filosofia da Educação, docente no Instituto de Psicologia da USP)
Publicado em 'Estudos de Psicologia', número 2, Agosto/Dezembro/1990, PUCCAMP

RESUMO

Este texto pretende trazer uma fenomenologia do ouvir em alguns de seus aspectos, principalmente aqueles que mais interessam a uma relação terapêutica e a uma relação educativa.
Com esse intuito comentam-se textos de Rogers, a partir das posições de Merleau-Ponty, Paul Ricoeur e Martin Buber. O ouvir se abre para o mundo significado pelo falante e para o contexto no qual este mundo ganha um sentido.

Gostaria de comentar aqui um texto de Rogers sobre o ouvir, que considero uma pequena jóia que ele nos legou. Trata-se de um trecho de uma palestra sobre comunicação, proferida para um público não especializado em psicologia, embora de alto nível de instrução. Pessoalmente acredito que quando tentamos nos comunicar com um público não especializado a respeito de temas que para nós são muito específicos e muito centrais, o resultado ou é desastroso, revelando a fragilidade de nosso pensamento, ou adquire um poder de síntese muito grande, incluindo mais vivamente nossa experiência para além dos limites impostos pelo uso dos termos técnicos. Creio que este texto de Rogers cabe na segunda categoria. Ele se encontra em português no livro de Rogers Um Jeito de Ser, e em inglês no A Way of Being, de l 980; mas a conferência foi originalmente proferida em 1964.

O texto em questão começa assim:

"O primeiro sentimento básico que gostaria de partilhar com vocês é a minha alegria quando consigo realmente ouvir alguém. Acho que esta característica talvez seja algo que me é inerente a já existia desde os tempos da escola primária. Por exemplo, lembro-me quando uma criança fazia uma pergunta e a professora dava uma ótima resposta, porém a uma pergunta inteiramente diferente. Nessas circunstâncias eu era dominado por um sentimento intenso de dor e angústia. Como reação, eu tinha vontade de dizer: "Mas você não a ouviu!". Sentia uma espécie de desespero infantil diante da falta de comunicação que era (e é) tão comum." (Rogers 1983, p. 4-5).

Se Rogers fala em "ouvir realmente" é porque ele quer separar esta atitude de uma outra que talvez. pudesse ser denominada também de "ouvir", mas que não é "realmente" um ouvir. A professora ouviu o aluno e respondeu. Mas não ouviu realmente, não houve comunicação, a pergunta à qual respondeu era diferente da que realmente tinha sido a pergunta. E o garoto Carl pensava: "Mas você não a ouviu."

O que não foi realmente ouvido? O significado. Mas aqui é preciso acrescentar também um "real". Ela não ouviu o significado real. A professora bem poderia dizer, e não sem razão, que ela respondeu ao que ele disse. Mas, diríamos nós, não respondeu ao que ele quis dizer. Acho que Rogers não está contando aqui simplesmente um caso de equívoco na comunicação, como se a professora não tivesse escutado direito ou confundido as palavras. O exemplo parece ser que ela escutou corretamente. E no entanto não ouviu.

Lembro-me aqui de um texto de Merleau-Ponty (l972, p. 227).

Diz ele é necessário

"reencontrar sob as linguagens empíricas, acompanhamento exterior ou roupagem contingente de todo pensamento, a palavra viva que é sua efetuação, onde o sentido se formula pela primeira vez, se funda assim, e se torna disponível para operações ulteriores." (grifos meus)

A palavra viva está sob a roupagem contigente do pensamento, é a efetuação desse pensamento. Se ficarmos na roupagem de que se reveste o pensamento, não o atingiremos enquanto algo vivo e presente. A palavra viva manifesta-se pela linguagem empírica, mas esta é apenas roupagem. Quando essa palavra viva é recebida (ouvida), ela se torna disponível para operações ulteriores. Ser ouvida significa ser plenamente pronunciada. Sem isso, (embora presente, germinalmente, ela permanece de certa forma não dita. O que será que aconteceu com a criança que não teve sua pergunta respondida? Ela poderá voltar a insistir, ou poderá esquecer sua pergunta verdadeira, substituí-la pela que a professora ouviu. Paulo Freire diria que a professora foi a "opressora" fazendo-se "hospedar" pelo então "oprimido", e fazendo-o distanciar-se de sua verdadeira palavra.

Ricoeur (l977, p. 36), comentando Heidegger, escreve:

"Minha primeira relação com a palavra não é de produzi-la, mas de recebê-la (...). Esta prioridade da escuta estabelece a relação fundamental da palavra com a abertura ao mundo e ao outro (...). A lingüística, a semiologia, a filosofia da linguagem, mantêm-se inelutavelmente no nível do falar e não atingem o do dizer (...).

O falar remete ao homem falante, o dizer remete às coisas ditas." (grifos meus)

O ouvir vem antes do falar. Por isso, como dirá Buber, a fala original (a que é um dizer), será uma resposta. É o ouvir que nos abre para o mundo e para os outros, e não o falar. E o que ouvimos é um dizer que nos remete a um mundo, e não apenas a um mero falar. O falar, aqui em Ricoeur, corresponde mais à roupagem contingente do pensamento, ou seja, às palavras, de Merleau-Ponty, do que à palavra viva. Esta está no dizer. É só considerando o discurso como um dizer, que recebo a palavra-viva; se o considero apenas como falar, recebo apenas suas palavras.

A professora de Rogers considerou a voz de seu aluno como falar e não como dizer. Reduziu-o assim a um homem falante, não recebeu seu mundo significado como atualidade. O verdadeiro diálogo, dirá Paulo Freire, se dá em torno do mundo significado. Quando realmente ouço, ouço o que alguém me diz (e não apenas o que fala), e isso me remete ao mundo.

Há uma distinção que também me ajuda a compreender isso. É a distinção entre mero significado e significado pleno. O mero significado fica ao nível das palavras, enquanto que o significado pleno se prende a toda presença significante tornada efetiva por essas palavras ditas.

Penso que existem três dimensões na fala (enquanto dizer). Uma semântica: a que se refere ao significado. Outra política: que se refere ao tipo de relação de poder que esta fala realiza ou propõe. E outra, a semiológica: que se refere àquilo que a fala indica ou sinaliza para além de seu significado. Essas três dimensões estão presentes na fala como ato concreto, mas elas só são claramente separáveis (quando a fala não é instrumento de uma atualização ou integração da pessoa, e conseqüentemente não veicula um poder como poderia; não compromete nem envolve a pessoa como um todo. Quando a fala faz isso, tem essa força, então fica mais difícil separar o significado, o poder e o indicado por ela, e então aparece mais claramente sua dimensão simbólica que é justamente a de integrar essas três dimensões face ao interlocutor. A isso chamo de fala autêntica. Na fala autêntica o significado não é separado do poder e nem daquilo que se faz presente por ela. E isto é o significado pleno. Ora, todas as falas são potencialmente autênticas, quer dizer, por alguma raiz se prendem a um solo de autenticidade (mesmo quando são falsas, inautênticas ou automatizadas). Portanto em qualquer caso posso estar aberto para o significado pleno, disponível para recebê-lo. Creio que é isso a disposição de ouvir realmente. E de fato receber o significado pleno e não apenas o mero significado, é ouvir. E a resposta que brota de um semelhante ouvir (como uma necessidade), bem poderia ser chamada de interpretação simbólica, pois coloca junto aquilo que eventualmente esta separado.

O texto de Rogers continua assim:

"Creio que sei por que me é gratificante ouvir alguém. Quando consigo realmente ouvir alguém, isso me coloca em contato com ele, isso enriquece minha vida." (Rogers 1983, p. 5) (grifos meus).

O "contato com o outro", e não apenas com seus meros significados, é equivalente, vem junto com o "enriquecimento de minha vida". E essas duas coisas vêm junto com o ouvir. Podemos então dizer que, para Rogers, ouvir é contato e é enriquecimento de vida. Embora possamos separar aí três momentos, na realidade essa separação é artificial: esses três momentos se interpenetram formando um único processo. Podemos de fato dizer que se não houve algum enriquecimento, não houve contato, e se não houve contato, não ouvi.

Isso se aproxima do que afirma Buber: a palavra verdadeira é a palavra dirigida, e é por isso que recebê-la me toca, me afeta de alguma forma. E se não fui afetado, não ouvi realmente. O ouvir não é uma atividade reflexiva; pelo contrário nos põe fora do nós mesmos. Paulo Freire diz que o educador popular precisa acreditar nas massas populares para que "já não apenas fale a elas ou sobre elas, mas as ouça, para poder falar com elas" (Freire 1983, p. 36). E Buber (l982, p. 44):

"Aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida. Enquanto coisas que me acontecem, os eventos do mundo são palavras que me são dirigidas."

Para Buber o acesso do homem à palavra se enraíza no acesso dele à relação. E nesse sentido a relação é mais ampla. A palavra expressa a relação (aquilo que põe o homem fora de si mesmo, mas onde ele também se realiza como homem). Não apenas as pessoas nos falam, mas também os eventos do mundo nos falam. É esse ouvir que está na origem de nossa palavra que será então uma resposta. - Os eventos dizia ele, são palavras a mim dirigidas. E continua (l982, p. 44):

"Somente quando os esterilizo, eliminando neles o germe da palavra dirigida, é que posso compreender aquilo que me acontece como uma parte dos eventos do mundo que não me dizem respeito."

A relação primeira, portanto, é de ouvir, e só depois é que pode haver ciência compreensão dos eventos como se não me dissessem respeito. A objetividade científica (que esteriliza os eventos do germe da palavra dirigida) é secundária ou derivada. A observação (fria) é derivada. O que existe primeiro é o ouvir que me envolve e afeta; é o ser tocado pelo evento como palavra dirigida, é o sentir a necessidade da resposta. Mas depois a humanidade se esforça por se livrar desse germe. E a própria linguagem serve a esse propósito (é o falar substituindo o dizer, e o observar substituindo o ouvir). Buber continua:

"O sistema interligado, esterilizado, no qual tudo isso só precisaria ser inserido, é obra titânica da humanidade. E a linguagem, ela também, foi colocada a seu serviço."

Ouvimos portanto para além das palavras, mesmo quando através delas.

Mas quando ouvimos assim, entramos em contato, diz Rogers, tomamos conhecimento íntimo, diz Buber, ou tocamos o centro da pessoa. O tomar conhecimento íntimo é uma forma de conhecimento anterior às formas específicas do conhecimento. É o conhecimento enquanto componente da relação, e da relação que me envolve. Só depois é que essa experiência poderá ser explicitada em conhecimentos específicos ou significados específicos. Eis como Buber explica esse tomar conhecimento íntimo (l982, p. 147):

"Tornar conhecimento íntimo de um homem significa então, principalmente, perceber sua totalidade enquanto pessoa determinada pelo espírito, perceber o centro dinâmico que imprime o perceptível signo de unicidade a toda sua manifestação, ação e atitude. Mas um tal conhecimento íntimo é impossível se o outro, enquanto outro, é para mim o objeto destacado de minha contemplação ou mesmo observação, pois a estas últimas esta totalidade e este centro não se dão a conhecer: conhecimento íntimo só se torna possível quando me coloco de uma forma elementar em relação com o outro, portanto quando ele se torna presença para mim. É por isso que designo à tomada de conhecimento íntimo neste sentido especial com o tornar-se presente da pessoa."

Ouvir é mais que observar, é estar em relação , e portanto tornar-se presente. Não é isso que Rogers está descrevendo quando fala do contato e do enriquecimento que estão contidos no ouvir verdadeiro?

Na seqüência do texto Rogers fala de um outro enriquecimento que vem completar este (1983, p. 5):

"Foi ouvindo pessoas que aprendi tudo o que sei sobre personalidade, sobre as relações inter-pessoais. Ouvir verdadeiramente alguém resulta numa outra satisfação especial. É como ouvir a música das estrelas, pois por trás da mensagem imediata de uma pessoa, qualquer que seja essa mensagem, há o universal. Escondidas sob as comunicações pessoais que eu realmente ouço, parece haver leis psicologicamente ordenadas, aspectos da mesma ordem que encontramos no universo como um todo. Assim, existem ao mesmo tempo a satisfação de ouvir esta pessoa e a satisfação de sentir o próprio eu em contato com algo que é universalmente verdadeiro."

Que verdade universal seria esta que está por trás da mensagem, e que é sentida, contatada, ao mesmo tempo que ouço? A resposta mais imediata e literal seria: são leis psicológicas, constâncias comportamentais. Mas a própria configuração do texto de Rogers, acredita, nos autoriza a irmos mais longe, ou melhor a ,virmos para mais perto. Ele não. fala apenas de posteriores elaborações abstratas da psicologia, mas de um "sentir o eu em contato com", e de um "ouvir a música. das estrelas". É verdade que ele coloca em paralelo a satisfação de ouvir a esta pessoa com a satisfação do contato com uma verdade universal. Não imporia tanto aqui sabermos como ele vivia essa dupla dimensão, o pessoal e o universal, O que importa é que ela fica registrada como descritiva de uma única experiência, a do ouvir. Isso nos dá o direito de nos perguntarmos, também por outros caminhos, que universal é esse e quais suas manifestações no próprio ouvir.

Ricoeur, num trabalho sobre como ele se situa face ao problema hermenêutico, nos diz que o discurso pode ser considerado em níveis diferentes de distanciamento em relação ao real. No nível mas básico temos o distanciamento da significação. Signos são feitos, distanciando-nos assim da realidade mesma; porém ela é, por assim dizer, resintetizada pelo evento da faia. Isso é o discurso como fala. Existe um distanciamento maior que se acrescenta ao da significação quando consideramos o discurso como obra. Aqui a composição da obra como um todo, o gênero literário e o estilo do autor devem ser levados em conta também para a compreensão do discurso. Num terceiro nível temos o discurso como escrita. Além de fixar o texto, o efeito principal do escrito é que ele se torna de certa forma independente do autor: a significação do texto não coincide necessariamente com a intenção do autor. Ela pode ser muito mais ampla como manifestação ou criação sócio-cultural do que o imediatamente intencionado ou explicitamente conhecido pelo autor. Ricoeur introduz aqui o conceito do "mundo do texto" ou "mundo da obra" que é um referente de segundo nível e que, diríamos nós, tem uma correspondência com o coletivo de Jung enquanto transcende a individualidade do momento intencional explícito do autor, mas que também o revela em níveis mais profundos. O exemplo da literatura de ficção e da poesia podem ajudar aqui. Eis alguns textos de Ricoeur:

'Não há discurso de tal forma fictício que não vá ao encontro da realidade, embora em outro nível, mais fundamental que aquele que atinge o discurso descritivo, constatativo, didático, que chamamos de linguagem ordinária. Minha tese consiste em dizer que a abolição de uma referência de primeiro nível, abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo, não mais somente no plano dos objetos manipuláveis, mas no plano que Husserl designava pela expressão Lebenswelt e Heidegger pela de "ser-no-mundo"." (Ricoeur 1977, p. 56).

Mais adiante:

"Pela ficção, pela poesia, abrem-se novas possibilidades de ser-no-mundo na realidade cotidiana. Ficção e poesia visam ao ser, não mais sob o modo de ser-dado, mas sob a maneira do poder-ser." (Ricoeur 1977, p. 57).

O que seria ouvir um discurso poético de alguém que tala conosco? Não seria necessária uma abertura para um universal pessoal para que pudéssemos dizer que realmente ouvirmos? E essa abertura e esse contato não nos toca?

Mais adiante:

"O que saberíamos do amor e do ódio, dos sentimentos éticos e, em geral, de tudo o que chamamos de o si, caso isso não fosse referido à linguagem e articulado pela literatura? O que parece mais contrário à subjetividade (o mundo do texto), e que a análise estrutural faz aparecer como a textura mesma do texto, é o próprio médium no qual, apenas, podemos nos compreender." (Ricoeur 1977, p. 58).

O universal do texto é também muito pessoal. Através dele contatamos o ser-homem. Ele revela o humano presente, e faz apelo a um posicionamento do leitor (ou do ouvinte).

Justamente esta última é uma quarta característica do texto ou nível de distanciamento do discurso, para Ricoeur: sua autonomia e disponibilidade para ser apropriado pelo leitor suscitar nele uma compreensão de seu próprio ser no mundo. Eu diria que este quarto nível de distanciamento do discurso, baseado em sua autonomia, é o do discurso como desafio. Diz Ricoeur:

"Compreender é compreender-se diante do texto. Não se trata de impor ao texto sua própria capacidade finita de compreender, mas de expor-se ao texto e receber dele um si mais amplo, que seria a proposição de existência respondendo, da maneira mais apropriada possível, à proposição de mundo." (Ricoeur 1977, pg. 58).

Ricoeur pretende explorar a noção de texto para compreender a hermenêutica (teoria e arte da interpretação). Mas nós podemos agora, a partir de nossa problemática, retornar do texto para a fala. De fato cada nível maior de distanciamento revela algo que já estava presente no nível anterior. Ouvindo alguém numa situação de diálogo (1o nível de distanciamento), minha compreensão passa pela consideração dos modos de significar (gênero literário, estilo e composição: características do 2o nível de distanciamento). Passa também por uma espécie de mundo do texto (3o nível de distanciamento, que se relaciona com a autonomia do significante de Lacan, e a "coisa" do texto); quer dizer: sou capaz de ouvir tudo que se faz presente, e não apenas o mero significado, digamos, literal. O sujeito também está nesse todo que se faz presente, e é transportado por ele. - E, finalmente, minha compreensão do outro no diálogo oral presente passa pelo meu próprio questionamento face ao outro (4o nível de distanciamento). Em resumo: os níveis mais abstratos de significado, que se relacionam com modos próprios de interpretação quando se trata de textos, estão todos presentes no primeiro e mais básico que é a compreensão do significado do que a pessoa tenciona me dizer no diálogo, ou seja, no simples ouvir.

Não estaria tudo isso incluído também no que Rogers quer aqui nos dizer? Se não tivermos consciência dessa amplitude do ouvir, nosso ouvir será parcial, e o alcance transformador do diálogo, limitado.

O texto de Rogers contínua (l983, p. 5):

"Quando digo que gosto de ouvir alguém estou me referindo evidentemente a uma escuta profunda. Quero dizer que ouço as palavras, os pensamentos, a tonalidade dos sentimentos, o significado pessoal, até mesmo o significado que subjaz às intenções conscientes do interlocutor. Em algumas ocasiões ouço, por trás de uma mensagem que superficialmente parece pouco importante, um grito humano profundo, desconhecido e enterrado muito abaixo da superfície da pessoa."

O que Rogers diz aqui que ouve são palavras, pensamentos, tonalidade dos sentimentos, o significado pessoal e o significado que subjaz às intenções conscientes. Ele não diz que deduz isso, mas que ouve. Um grito humano profundo e escondido atrás de uma mensagem, pode ser ouvido. - E no parágrafo seguinte ele traz alguns elementos a mais:

"Assim, aprendi a me perguntar: sou capaz de ouvir os sons e de captar a forma do mundo interno desta outra pessoa? Sou capaz de ressoar tão profundamente sobre o que está sendo dito, a ponto de entender os significados que ela teme e ao mesmo tempo gostaria de me comunicar, tanto quanto os que ela conhece?"

Não seria a forma do mundo interno uma espécie de mundo do texto (uma forma daquele universal-pessoal), aplicada à fala presente no diálogo?

A construção da última frase (que traduzi diretamente do original, pois a tradução portuguesa disponível não me pareceu boa), é particularmente interessante. Os significados que a pessoa teme mas ao mesmo tempo gostaria de comunicar, se opõem aos significados que ela conhece. Pela ressonância do ouvinte, ele ultrapassa o nível do que é conhecido explicitamente pelo outro (isso não é um pensar, mas uma ressonância). Eis como Merleau-Ponty explica isso:

"(Na compreensão da tala de outra pessoa) não é primeiramente como representações ou com o pensamento que eu me comunico, mas com um sujeito falante, com um certo estilo de ser e com o mundo que ele visa. Assim como a intenção significativa que pôs em movimento a fala da outra pessoa não é um pensamento explícito, mas uma certa carência que procura se preencher, assim também a retomada por mim dessa intenção não é uma operação do meu pensamento, mas uma modulação sincrônica de minha própria existência, uma transformação do meu ser."
(Merleau-Ponty 1967, p.214).

É essa modulação sincrônica da existência (Merleau-Ponty), ou ressonância (Rogers) que está na raiz da resposta falada por mim, ou da espera ativa da palavra não formulada do outro. O ouvir é um abrir-se para o outro, pré-verbal, experiencial. É a vivência desse nível pré-verbal que instaura a relação, o contato e a necessidade de resposta.

Só sei que ouvi quando senti a necessidade da resposta, ou quando de fato a ofereci no diálogo. Mas então o outro sente que pronunciou plenamente sua palavra. E isso a torna disponível para operações ulteriores.

O texto de Rogers que estamos comentando termina assim (p. 6):

"Constato, tanto em entrevistas terapêuticas como nas experiências intensivas de grupo que me foram muito significativas, que ouvir traz conseqüências. Quando efetivamente ouço uma pessoa e os significados que lhe são importantes naquele momento, ouvindo não suas palavras mas ela mesma, e quando lhe demonstro que ouvi seus significados pessoais e íntimos, muitas coisas acontecem. Há, em primeiro lugar, um olhar agradecido. Ela se sente aliviada.
Quer falar mais sobre seu mundo. Sente-se impelida em direção a um novo sentido de liberdade. Torna-se mais aberta ao processo de mudança."

Embora Rogers separe momentos aparentemente independentes aí, na verdade aquilo de que ele está falando é um processo em que o momento de ouvir está implicado no momento de responder, e esta resposta está implicada naquilo que então ocorre naquele que foi ouvido. É por isso que podemos dizer, sintetizando tudo, que o simples ouvir tem efeitos transformadores surpreendentes. Essa foi a grande intuição de Rogers.

SUMMARY

This article intends to bring out a phenomenological view of listening concerning some of its aspects especially those related to the therapeutic and educational relationship.
Aiming this purpose it was chosen one of Rogers' papers to be commented under Merleau-Ponty, Paul Ricoeur and Martin Buber's perspectives. When one listens to another person he opens himself to the other's meant world and to the context through which this world acquires a meaning.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUBER, Martins. Do diálogo e do dialógico. São Paulo, Perspectiva, 1982.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo, Cortez, 1983.

MERLEAU-PONTY, Maurice. La structure du comportement. Paris, Gallimard, 1972. (Existe trad. Portuguesa).

MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1967. (Existe trad. portuguesa).

RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro, F. Alves, 1977.

ROGERS, Carl. Um jeito de ser. São Paulo, EPU, 1983.

ROGERS, Carl. A way of being. Boston, H. Mifflin, 1980.



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